segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Como pornografia afeta o cérebro e hábitos sexuais de jovens como a cantora Billie Eilish

 

Algumas décadas atrás, a pornografia era uma indústria marginal, parte da contracultura e contava até com ativistas da liberdade de expressão nos EUA entre seus defensores. Vozes contrárias eram formadas principalmente por grupos religiosos e conservadores. Atualmente, a pornografia se encontra em um cenário bem distinto. É uma indústria bilionária, movimenta um quinto de todas as buscas realizadas em celulares e tem entre suas críticas mais contundentes uma artista jovem de imagem dark e rebelde. A cantora norte-americana Billie Eilish, de 20 anos, disse em uma entrevista recente que pornografia é “uma desgraça”, e relatou ter sido exposta a imagens “violentas” e “abusivas” quando começou a consumir esse tipo de conteúdo, aos 11 anos. Eilish afirmou que seu cérebro foi “destruído” por assistir a vídeos perturbadores de sexo com tão pouca idade. E ressaltou que muitas dessas produções distorcem os limites do que é considerado normal durante o sexo – incluindo o consentimento.

O avanço da pornografia está intimamente ligado à evolução tecnológica e das mídias. Em boa parte do mundo na era pré-internet, o material sexual mais amplamente disponível consistia de revistas com nudez (quase sempre feminina) e fitas VHS alugadas em videolocadoras, ambas com restrição de comercialização para menores de 18 anos. A chegada da web mudou o jogo. O aumento da velocidade de banda larga no mundo a partir do fim dos anos 2000 e a popularização do smartphone impulsionaram a quantidade e a variedade de pornô consumido – além de ter tornado mais fácil o acesso ao conteúdo.

Há pouco controle de verificação de idade para visitar sites de conteúdo explícito. No Reino Unido, grupos pela proteção de crianças têm realizado campanhas para que o órgão regulatório britânico estabeleça essa medida. Austrália e Canadá debatem o uso de uma identidade biométrica para acesso, mas há temores sobre invasão de privacidade de usuários adultos. No Brasil, tramita na Câmara um projeto do deputado federal Dagoberto Nogueira (PDT-MS) para exigir comprovação digital de maioridade.

Um levantamento feito com 9.250 pré-adolescentes entre 10 e 14 anos de cinco países mostrou que já consumiram material explícito nessa faixa etária 14,5% dos jovens entrevistados no Equador (a menor taxa) e 33% na Bélgica (a maior). O estudo foi publicado em julho de 2021 no periódico científico Journal of Adolescent Health e focou em moradores de áreas pobres.

Vício

Embora haja grande debate na comunidade médica sobre a precisão do termo – já que são necessárias certas condições para definir como patologia – psicólogos e psiquiatras começaram a tratar casos com aparelhos digitais que envolvem dependência. Uma dessas profissionais é Anna Lembke, professora da Universidade Stanford, nos EUA, e chefe da clínica médica especializada em dependências na mesma instituição.

Em entrevista à BBC News Brasil, ela diz que “as propriedades viciantes de qualquer droga são potencializadas por mais quantidade, mais acessibilidade, mais potência e mais novidade. Internet e aparelhos digitais portáteis promovem aumento de todos esses domínios, fazendo com que a pornografia de hoje se torne mais abundante, mais acessível, mais potente e com mais novidades do que a pornografia do passado – e portanto mais viciante”.

Para ela, “o vício em sexo é um enorme problema, que cresce de forma oculta” na sociedade e já levou alguns de seus pacientes a contemplar a ideia de suicídio. “Não diz respeito a estilos de vida ou normas sociais. É sobre os modos como a tecnologia transformou a conexão humana – e nisso também entra o sexo – em uma droga a que todos têm acesso, incluindo crianças.”

Lembke lançou em 2021 Dopamine Nation: Finding Balance in the Age of Indulgence (Nação Dopamina: Por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar). O livro examina o papel desse neurotransmisssor (central em atividades do cérebro ligadas a recompensa e prazer) no contexto do consumo compulsivo – de comida, celular, redes sociais, entre outros campos – na vida moderna. A pornografia também é um atrativo nessa dinâmica determinada por descargas de dopamina.

A professora da Universidade Stanford explica em seu livro que nosso organismo está sempre tentando manter a homeostase, uma condição relativa do equilíbrio corporal. Um dos pontos desse estado é o meio-termo entre prazer e dor. Após obter uma sensação prazerosa – seja ao comer chocolate ou pela masturbação -, o cérebro desencadeia um processo para compensar o outro lado da balança, com o intuito de voltar à homeostase. O lado da dor pode se manifestar como desconforto, irritação ou uma leve depressão. Há então o impulso de recriar a sensação anterior de prazer.

Essa dinâmica neural ocorre em todos, mas tem uma influência diferente nos mais jovens: o cérebro humano está em formação até os 25 anos. “Neurônios que ‘disparam’ juntos criam conexões entre si”, afirma Lembke. “Isso significa que se passarmos a adolescência consumindo pornografia em excesso, como mecanismo primário para obter um efeito de relaxamento – e é sobre isso o vício em pornografia -, então nós criaremos circuitos neurais robustos que se enraízam e se consolidam para a vida adulta.”

Tentar recriar repetidamente uma sensação de prazer pode diminuir sua intensidade com o tempo. É aí que funciona a analogia com o vício em drogas: surge a busca por doses mais fortes.

Na pornografia online isso muitas vezes se traduz em clicar em vídeos sexuais extremos, com violência ou algum tipo de tabu. “A dopamina responde à novidade em um ambiente, seja boa ou ruim. Porque leva alguém a adotar ou a evitar um comportamento, algo fundamental para a sobrevivência”, afirma Lembke.

Anna Lucia Spear King, professora da pós-graduação do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora-fundadora do Laboratório Delete-Detox Digital na mesma instituição, aborda dependências tecnológicas como “a ponta do iceberg, para investigar o que está por trás desse comportamento”.

Em sua visão, “dependências de um modo geral são fruto de uma vulnerabilidade da pessoa, junto com questões familiares e fragilidades emocionais. Isso é direcionado para um caminho que aparece disponível na vida delas”, diz. “Essa necessidade de preenchimento emocional é direcionada para a compulsão, por exemplo, pela pornografia online.” […]


Fonte: BBC