Ao longo da história recente, diversas figuras públicas — especialmente líderes políticos influentes — foram apontadas, por intérpretes de viés futurista, como possíveis candidatos a ocupar o papel da Besta do Apocalipse descrita em Apocalipse 13. Entre os nomes que já receberam tal designação estão: Ronald Reagan, Barack Obama, Emmanuel Macron e Donald Trump. Em todos os casos, os motivos variaram de numerologia (como o caso de Reagan, cujo nome completo "Ronald Wilson Reagan" tem três palavras de seis letras — 666)1, à retórica carismática, influência internacional, ou políticas polarizadoras.
Essas interpretações vêm, em sua maioria, da escola futurista, especialmente em sua vertente dispensacionalista, que ganhou força com os escritos de John Nelson Darby no século XIX2 e foi posteriormente popularizada nos Estados Unidos através da Scofield Reference Bible (1909)3. O dispensacionalismo entende que grande parte das profecias de Daniel e Apocalipse se referem a eventos ainda futuros, geralmente vinculados ao período da chamada "Grande Tribulação". Nessa perspectiva, a Besta é muitas vezes entendida como um líder político mundial que surgirá nos últimos dias, possivelmente à frente de um governo global.
Essa abordagem, no entanto, tem levado a um padrão de constante revisão e atualização de candidatos ao papel da Besta, à medida que o cenário político internacional muda. A cada nova eleição ou conflito, surge um novo "anticristo em potencial", criando um ciclo de previsões que raramente se concretizam e acabam sendo descartadas com o tempo. Esse fenômeno levanta questões sérias sobre a estabilidade hermenêutica desse modelo.
Por outro lado, a escola historicista (que está na base da visão Adventista) oferece um contraste notável. Essa abordagem interpreta as profecias apocalípticas como se cumprindo progressivamente ao longo da história, desde os dias dos apóstolos até a consumação final. Essa linha foi amplamente adotada por reformadores protestantes como Martinho Lutero, João Calvino, John Knox e os puritanos ingleses, que identificaram a Besta, bem como o "homem do pecado" de 2 Tessalonicenses 2, com o sistema papal romano. Lutero, por exemplo, declarou: "Eu estou convencido de que o Papa é o anticristo verdadeiro"4.
Autores historicistas como Isaac Newton, em sua obra Observations upon the Prophecies of Daniel, and the Apocalypse of St. John (1733), interpretaram os eventos de Apocalipse como representações simbólicas da história da Igreja, incluindo o surgimento do papado, as perseguições medievais, a Reforma e os conflitos europeus subsequentes5. Essa leitura não depende de especulações baseadas em figuras contemporâneas, mas de uma estrutura contínua e coerente, que busca reconhecer o desenvolvimento do cristianismo institucional ao longo dos séculos como o palco do cumprimento profético.
Enquanto o futurismo tende a ser reativo aos eventos atuais — levando a interpretações frequentemente sensacionalistas — o historicismo mantém uma abordagem sistemática, ancorada em eventos históricos já realizados. A repetida troca de nomes e rostos no papel da Besta entre os futuristas pode, portanto, ser vista como evidência de uma certa fragilidade interpretativa. Em contraste, a escola historicista permanece notável por sua consistência exegética ao longo de mais de cinco séculos.
Em termos teológicos, essa estabilidade pode ser entendida como um reflexo de uma hermenêutica mais sólida, que reconhece a progressividade da revelação histórica. O futurismo, ao deslocar o cumprimento profético para um futuro indefinido, frequentemente desconsidera o papel central da história da Igreja — e, consequentemente, da luta entre verdade e erro — como o palco primário da batalha escatológica.
Conclusão
A multiplicidade de "candidatos à Besta" sugeridos por futuristas ao longo das últimas décadas evidencia um problema fundamental: a falta de estabilidade hermenêutica. Em contraste, a abordagem historicista oferece um modelo interpretativo que, embora menos popular em círculos modernos, apresenta uma coerência histórica notável e se ancora na tradição reformada. Esse contraste levanta uma questão importante: estariam os eventos do Apocalipse mais conectados à história já percorrida do que a um futuro sempre em mutação? Para muitos estudiosos historicistas, a resposta continua sendo um firme "sim".
Referências :
Moyer, Elgin. Who Was Who in Church History. Keats Publishing, 1974. Essa alegação sobre Reagan se popularizou entre grupos de interpretação literalista e conspiratória. ↩
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Darby, John Nelson. The Collected Writings of J.N. Darby, Vol. 2: Doctrinal. London: G. Morrish, 1867. ↩
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Scofield, C. I. The Scofield Reference Bible. Oxford University Press, 1909. A obra foi crucial para espalhar o dispensacionalismo nos EUA. ↩
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Lutero, Martinho. WA (Weimarer Ausgabe), Vol. 8, p. 708. Ver também: An den christlichen Adel deutscher Nation, 1520. ↩
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Newton, Isaac. Observations upon the Prophecies of Daniel, and the Apocalypse of St. John. London: J. Darby and T. Browne, 1733. ↩